Deraldo da 13 a volta da Galeria dos Novos
Deraldo Lima é um nome das artes plásticas em Salvador. Crítico de arte. Sente o cheiro do talento. Pinta também e patrocina o que dos outros brotam dos pincéis. Não da pintura sob o abrigo dos grandes museus ou das renomadas galerias. Mas das artes plásticas feitas pelo prazer e pelo deleite. Aquela criação executada numa roda de amigos artistas. Por gente na sua maioria simples e sem berço esplendido. Os seus espaços de exposição sempre foram crias da concepção do próprio Deraldo. Paredes cruas, sem reboco e aparecendo a tijoleira de fundo. Assim gosta Deraldo, assim gostamos nós. Há a beleza e a poesia na singeleza dos utilitários artísticos do decano. Algumas vezes, ver e encontrar as obras de arte deste Mecenas pode ser um quebra-cabeça. De tempos em tempos o rebelde toma novo rumo, muda. Faz pouco tempo que deixou São Tomé de Paripe na zona suburbana da cidade. Mas não procurem muito, porque ele pode ser encontrado bem perto da gente. Morando no Gravatá, vizinho da histórica fonte, com certeza ele poderá ser visto. Todos o conhecem no bairro. É o único ser na Bahia a ter uma paisagem pintada na lente dos óculos. Deraldo Lima é estilo, personalidade e coragem. Vocês não imaginam o prazer que tenho em escutá-lo.

Antes de partirmos para a entrevista o Marccelus Portal gostaria que vocês conhecessem a apresentação feita por Deraldo Lima do pintor Pernambucano, hoje mais conhecido pelas telas de abertura da novela “Cabocla” da Rede Globo, Manassés em 1984: “ Conheci Manassés em 84 quando ele me trouxe alguns trabalhos para avaliação Seu talento me pegou de surpresa pois, velho dono de Galeria, muito pouca vezes tenho a oportunidade de presenciar o verdadeiro” dom”, como o que ele me trouxe. Arte é assim… Um trabalho extremamente complexo para se chegar ao mais simples. Manassés chega ao simples, através da técnica e da elaboração. Suas figuras têm a expressão forte da ingenuidade, que nos incita a lhes por a mão no ombro, chamá-las de amigas. Há um forte apelo de chão e sangue na obra deste pernambucano, que, certamente, abraçará o mundo em muito poucas pinceladas mais”.
E das cinzas surgiu Deraldo? É uma fênix de Inhambupe?
Quase virei pó. Aos seis meses de idade na Fazenda Pau Ferro a mulher que tomava conta da gente me deixou numa rede que pegou fogo. Quase morri quando um candeeiro virou por cima de mim. Sobrevivi não sei nem porque.
Talvez tenha sido um milagre?
Milagre é coisa que não acredito. Sou ateu. Já me cansei de ver baboseira bíblica repetida à exaustão para aliciar idiotas e imbecis que tiram o que não tem para dar a pastor e a sustentar vilanias de Igrejas. Tem muito safado se aproveitando da miséria alheia. Tive irmão carola que sempre me recriminava por minhas convicções…meu Deus é o socialismo. É quando existe a partilha e todos fazem parte de um espaço consagrado de justiça social. Ninguém pisando em ninguém. Não acredito em nada de espiritismo…agora tenho respeito porque respeito o ser humano. Outro dia cedi o espaço da minha Galeria pros Mórmons fazerem uma exposição e me irritei todo o tempo com aquelas exclusões sociais advindas das ancestralidades das raças, um absurdo.

Mas você teve uma formação cristã não?
Alguém pode fugir disto? Claro que não! Morei toda a minha vida com parentes religiosos, mas ninguém conseguiu me convencer da existência divina. Sei que sou um homem de sorte. Tenho vivido muito tempo e de maneira saudável. Quase nunca fico doente ou me faltam coisas materiais. Daí eu vejo tanta gente miserável, sofrida e doente que pede e reza demais, clama tanto, faz tanta promessa e penitência e nada, não chega pra eles o milagre esperado e pra mim a vida me sorri. Incrível não?
E os medos? Deraldo não teme a morte?
A morte é uma bobagem. Não existe nada depois. Só apodrecimento, terra e vermes que te comem. O nada é logo ali. Tenho 78 anos. Tive medo sim, quando tinha seis anos e do Boneco da cera Parquetina que balançava a cabeça e os braços em frente à “Pharmácia Caldas” ali na Avenida Sete. Aquela geringonça era o terror da molecada. Eu me arrepiava só de imaginar em passar perto daquele crioulo doido [risos].

E a arte do Deraldo deu motivo à Galeria dos Novos?
Nunca imaginei que um dia eu enveredasse por este caminho. O que eu fazia era uma coisa que nem sei explicar direito a razão. Saia por aí recortando revistas ou comprando postais e os colocava em molduras ou simplesmente os colava por toda parede do meu quarto. Daí surgiu em 1962 na pensão “Portas do Carmo” que eu tinha na Rua Alfredo Brito n. 33 a Galeria dos Novos. Na realidade fui incentivado por meus hóspedes o Dr. Raimundo José, Prof. Wilson, Prof. Lourival Tavares Pinto e Abud [que teve fim trágico assassinado por um garoto de programa] e em especial por meu amigo Durval Queiroz [primo do Diretor do TCA Theodomiro Queiroz]. Assim nasceu a Galeria dos Novos [Novos porque os nossos artistas não faziam parte do grupo seleto dos artistas da tradicional Bazart que era um refúgio intelectual de classe média – a nossa Galeria seria assim uma espécie de primo pobre da outra]. O Durval me orientou no sentido de que fizemos um espaço alternativo, sem fins lucrativos e que abríssemos o espaço da Galeria dos Novos realmente aos novos talentos. Adorei e embarquei na idéia. Um detalhe, sempre tive um bar em minhas galerias. A idéia era manter o local o mais agradável possível. Seria um refúgio das horas.

E a Galeria 13 veio para ficar?
Bom, em 1963 já tínhamos consolidado um território artístico bastante popular e já estava no gosto das pessoas. Já tínhamos artistas como o Padre Pinto, Arnaldo Brito, Fernando Oliveira [ o hoje renomado Feijó] que fez a primeira exposição individual na Galeria dos Novos, etc… Foi ai que tivemos presenças ilustres como o mecenas Paschoal Carlos Magno, a cantora Silvinha Telles, Sônia dos Humildes [para mim uma inesquecível atriz], Raimundo Oliveira, Eckio Reis, César Romero, Juarez Paraíso, Cauby Peixoto e tanta gente mais que nem consigo lembrar. Corria na época até que a Cláudia Cardinalli teria manifestado publicamente a vontade de vir a Bahia só para estar com a gente na Galeria 13. E não posso esquecer da minha querida Nilda Spencer, que levada por Carlos Bastos, todo engessado pois fora acidentado em Copacabana, entrou não só naquele espaço das artes mas em nosso coração. Minha amiga de décadas. Depois da Galeria dos Novos veio a Galeria 13 e o Arts Bar que funcionou muito tempo na Rua Rui Barbosa n. 57. Depois parti pra Rua Santa Isabel n. 13 já na década de 70 e mais gente acompanhando as peripécias artísticas dos novos talentos que dávamos oportunidade em nossas galerias. Nesta fase a Elke Maravilha se deslumbrava no meio da Bahia no sangue. O cineasta Nelson Pereira dos Santos rodou parte do seu filme Tenda dos Milagres em minha casa, aqui foi o “Cabaré da Ester” e no térreo as “oficinas de Pedro Archanjo”. Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gessy e Vinícius de Moraes nos visitavam. Já nos anos 80 Hugo Carvana, Tzuka Yamazaki, Macalé, Jofre Soares, Nildo Parente ali se reuniam para tratar de cinema, bebericar e estar em contato com os nativos do Pelô.
Agora você é beato Que história é essa do Conselheiro na tua vida?
Nasceu da semelhança física que tenho com o personagem do Cocorobó. O Beato Antonio Conselheiro foi um socialista e isso nele tem o seu valor. Tem muito a ver comigo. Não gosto de injustiça e não quero nada de ninguém. Levo a minha vida comendo como um prato frio os bons momentos – saboreando bem e todos me conhecem como pessoa simples, sem grandes ambições e vivendo à minha maneira. Hipocrisia é doença. Chamam-me para encarnar o líder espiritual – vejam que contradição, logo eu um ateu – em filmes e apresentações teatrais. Agora mesmo cheguei de um encontro de trovadores no Espírito Santo em que encarnei o Conselheiro e no filme “Epopéia de Canudos” de 1993 do diretor Carlos Pronzatto tive uma atuação no papel do Beato e como ator convidado . E nas ruas do Bairro , nos desfiles oficiais e comemorativos a datas cívicas sempre me convidam a encarnar o mártir de Canudos. O faço com prazer, pois deixar morrer a identidade e o caráter libertário da nossa gente do sertão seria um crime ou desrespeito a nossa história.

Conta aí Deraldo, o teu pessoal era difamado pela ditadura?
A nossa Galeria, desde o surgimento no inicio dos anos 60 foi tachada de “Casa das Bichas”. Volta e meia lá ia eu na Delegacia dar explicações e passar por vexames públicos por causa dos artistas que freqüentavam o meu estabelecimento. O grande desafio da polícia na época era identificar os “viados”. Havia um rolo compressor das autoridades contra quem se desviava da dita normalidade. A boemia, a poesia e o erotismo foram coisas minhas e síntese meus estabelecimentos. Mesmo sofrendo horrores eu nunca abri mão destas poucas liberdades que tínhamos entre as quatro paredes da Galeria dos Novos. As pessoas, em meio ao clima de repressão e de terror moral implantado pelo regime militar, afloravam na minha casa, se sentiam momentaneamente seguras, livres e felizes. Havia dias em que eu não agüentava tanta frescura e xingava as doidivanas. Aborrecia-me até. Sou de uma outra geração, aquela que não tinha suficiente conhecimento da homossexualidade. E quando via que a coisa estava exagerada eu dava uma de grosso. Mandava as bichas se comportar, afinal no fim das contas era eu que enfrentava a polícia e não as desvairadas. O Sylvio Lamenha era um deles, colunista famoso dos Diários Associados e de saudosa memória que já subia as minhas escadas gesticulando e imitando a Dalva de Oliveira. Borges Cabeleireiro lá ia com freqüência. A “Bofélia” Edy Star que tinha um programa na TV Itapoá era um dos artistas que me visitava com assiduidade. Enfim, lutei muito para que o meu espaço de Galeria de Arte fosse também um território livre e libertário. Sempre lidei com arte e arte é prazer e satisfação interior. Alguém pode criar insatisfeito consigo mesmo? Sendo coagido ou humilhado? Pois é, assim sobrevivi à ditadura a driblando enquanto podia.
De volta ao começo agora com a reabertura da Galeria dos Novos?
Estou de volta ao Gravatá. A dinâmica da arte exige que nos reciclemos sempre. Há novas linguagens e acima de tudo, gente com carência de mostrar seus trabalhos e que precisam de incentivo. A Galeria é dos novos sim. Tenho uma sobrinha artista plástica. Me entroso também com a poesia e cedo a casa pra saraus poéticos inclusive aqui já foi a “Casa do Poeta Brasileiro” e abrigou por algum tempo a Academia de Letras Castro Alves. Desde o longínquo 1962 aqui estou de volta com a Galeria dos Novos sejam bem vindos!

GALERIA DOS NOVOS Deraldo Lima Rua do Gravatá, n. 37 – Nazaré Tel: 321 0347
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