A PARADA DE SÃO PAULO HOMENAGEIA POSTUMAMENTE A JOÃO ANTONIO MASCARENHAS
Luiz Mott receberá prêmio póstumo em nome do saudoso militante
Por Marccelus Bragg
Final de maio dos mais aguardados em todo o Brasil. Dos quatro cantos do país, os olhos e os corações orgulhosos da condição GLBTS se voltam para São Paulo. E será esta a metrópolis anfitriã. E poderá estar acontecendo o maior evento gay do mundo. A Parada GLBT 2005 a se concretizar no próximo dia 29 e cujo tema será “Parceria Civil Já: Direitos Iguais, nem menos nem mais”.


E eu destaco, dentro do bem elaborado Calendário de Eventos da Associação do Orgulho GLBT de São Paulo, a entrega do importante “Prêmio Cidadadania em Respeito a Diversidade” que ocorrerá na sua sexta edição e terá como palco a casa de espetáculos Tom Brasil na região central da capital paulista.

Sem dúvida que receber uma premiação e ser lembrado num evento do porte desta Parada é uma honraria para poucos. Um motivo de orgulho. E ainda mais, quando o escolhido habita a eternidade e já não está entre nós. Porque vê-se que a memória e tudo que o agraciado representou não virou pó ou caiu no esquecimento. Os seus feitos continuam vivos e são capazes de emocionar. Como será, para todos nós, a grata satisfação em assistir ao antropólogo Luiz Mott, receber em nome do já falecido João Antonio Mascarenhas a sua homenagem póstuma.

Recai sobre a organização da Parada GLBT 2005 os festivos louros da escolha. João Antonio foi o militante homossexual que passou a maior parte da sua vida dedicado a causa. E Luiz Mott é de fato e naturalmente, neste momento, a figura do cenário GLS nacional talhada e com o direito à receber este louvor representando o militante desaparecido.

Com a mais absoluta certeza, o João Antonio Mascarenhas, de onde estiver agora, estará aplaudindo este momento. Ambos, Luiz Mott e o JAM, como o gaúcho militante assinava as suas “ minunciosas e organizadas correspondências”, eram amigos. Eu testemunho uma grande parte desta amizade, as divergências em alguns pontos da estragégia de luta, mas todo tempo afinados e unidos em torno de uma causa comum, a de “não deixar nada passar em branco e dar o troco à altura” para todo e qualquer preconceito e homofobia.

Eram tempos difíceis, havia uma Assembléia Nacional Constituinte em ação e muito trabalho para incluir a palavra Orientação Sexual no texto da Carta Magna e a AIDS, representava o gancho que os reacionários precisavam para tratar os homossexuais como párias e eternos culpados. E encampando estas frentes de batalha João Antônio Mascarenhas – aliado ao Mott – e com apoio de várias agremiações organizadas do MHB construiu um momento único de resistência. Tinhoso, persistente, organizado e inteligente, JAM foi um grande exemplo de brasileiro Gay.

O episódio do “Assassinato do Vereador Homossexual Renildo, de Coqueiro Seco/AL” me marcou profundamente. Tudo pelo seu empenho e pela sua jornada por justiça. Lutando por transparência naquele hediondo episódio de homofobia. De como o João Antônio Mascarenhas, se deslocava do Rio e se envolvia emocionado com a dor e o sofrimento causado aos familiares do trucidado alagoano. Tanto que o reconhecimento veio em seguida e o nome do Gay assassinado virou prêmio pró Direitos Humanos na Austrália.

Sem dúvida que a sua memória é um resgate primoroso e dar esta oportunidade a que a história do MHB o reconheça é surpreendente. Algumas rápidas informações a respeito da luta deste combativo personagem são estas que cito adiante, mas a biografia completa, tudo sobre a vida e os detalhes dos feitos do JAM , são de autoria de Robert Howes, inglês, pesquisador e amigo do militante que sempre nos fará falta.

1991 – Julho – Coletiva contra o assassinato de Homossexuais/Rio 
João Antonio de Souza Mascarenhas, nasceu em Pelotas/RS em 24 de Outubro de 1927, advogado, poliglota, fundador do Jornal O Lampião e do Grupo de Conscientização Homossexual Triângulo Rosa/RJ. Foi o primeiro Gay assumido a falar Congresso Nacional em duas das sub-comissões pró Constituinte de 1988 e o pioneiro dos latinos americanos à filiar-se a ILGA enquanto pessoa física. Militou competentemente pela inclusão do termo “Orientação Sexual” nos textos de cartas magnas e de leis orgânicas, pelos registros dos Grupos Gays enquanto associações civis, pela queda do dispositivo 302.0 do Inamps que taxava os Homossexuais como portadores de “desvios e de transtornos sexuais, Etc.. Vindo a falecer em 1998 na cidade do Rio de Janeiro onde passou a maior parte da sua vida.


Também, como contribuição enriquecedora ao Movimento Homossexual Brasileiro agradecemos ao prof. Dr. Cládio Roberto da Silva por disponibilizar como referência histórica esta autobiografia do João Antonio de Souza Mascarenhas. Uma preciosidade à ser computada à favor da nossa identidade gay.

NÃO SE ESQUEÇA QUE O PRÊMIO PÓSTUMO A JOÃO ANTONIO MASCARENHAS SERÁ ENTREGUE NESTE EVENTO:

LEIA A BIOGRAFIA

João Antônio de Souza Mascarenhas:
Auto-Biografia
No primeiro contato com João Antônio Mascarenhas marcamos a entrevista para um começo de noite. Preocupado com a pontualidade saí com muita antecedência. Após enfrentar um trânsito inesperado, cuja demora gerou uma sensação de contragosto, pude cumprir com a pontualidade. No horário preciso fui recepcionado por João Antônio Mascarenhas. Com gestos gentis, fui convidado a entrar no apartamento. Ao fechar a porta, ele deixou toda confusão da metrópole do lado de fora. Sentia-me como se saísse do caos para entrar na ordem. Lá dentro havia um silêncio acolhedor, ideal para um depoimento. Não houve interrupções durante a gravação. A narrativa de João Antônio Mascarenhas preservou uma segurança bem elaborada. O tom das palavras era em voz baixa, tranqüila e reservada. Enquanto falava, os gestos confirmavam a mesma discrição. Esse estilo estendeu-se até o final do depoimento. Rio de Janeiro, RJ, 24 de agosto de 1995.
Nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul, em 24 de outubro de 1927
Funcionário Público, Bacharel em Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
“Na minha vida, tenho umas passagens que são meio engraçadas… meio diferentes. Uma delas, por exemplo, foi ter entrado no serviço público por uma agência de empregos. A outra foi ter me assumido publicamente – pela primeira vez – através da imprensa.”
O meu nome é João Antônio de Souza Mascarenhas. Nasci no dia 24 de outubro de 1927, em Pelotas no Rio Grande do Sul. Nasci numa cidade média… é a segunda cidade do Estado. Naquela época, ela devia ter uns cento e cinqüenta à duzentos mil habitantes. O meu pai era pecuarista e a minha mãe dona de casa. A minha infância não teve nada de especial… foi muito boa porque os meus pais se davam muito bem. Eu tinha uma série de tios, tias, primos, avós e tinha até mesmo uma bisasó. Ela morreu com noventa e quatro anos, ela era muito lúcida até dois meses antes de morrer… quando ela teve um derrame. Na época de sua morte, eu tinha quinze anos. Minha bisavó era uma figura muito forte… era realmente uma matriarca! A família toda possuía uma admiração, um afeto muito grande por ela. Todos nós vivíamos sobre a influência dela.
Desta forma, acho que a minha infância foi muito boa… muito plena. Por causa desse ambiente franco familiar… é uma coisa muito complexa! Além do que, como era numa cidade pequena, quase todos os dias, nós nos víamos lá na minha bisavó: os meus avós, os meus primos e os tios também. Era uma família muito grande. Meu pai tinha três irmãos e a minha mãe também tinha três. Todos gaúchos de Pelotas.
Sou de uma família que pertence a um meio conservador. O meu pai era pecuarista, assim como foram o meu avô, o meu bisavô, o meu trisavô, o meu tetravô. Neste sentido, a pecuária era uma tradição da família e eu saí do rumo. Essa parte rural é sempre a mais conservadora… evidentemente havia muito machismo. O machismo gaúcho é uma característica muito forte, contudo, o machismo existe em todo o Brasil. Porém, no Rio Grande do Sul, além dele ser forte, ele é cultivado. É uma característica valorizada em nível de sociedade, em nível de família… incluindo assim a minha família. Pude senti-lo durante a infância e a adolescência no ambiente familiar. Isso era algo que me desagradava, pois via a valorização do machismo como um impedimento… uma pressão contra minha tendência homossexual.
Estudei em Pelotas até os dezoito anos. No nível escolar intermediário, nunca me esforcei para ser o primeiro. Eu passava por média… apenas gostava de estudar. Nunca repeti um ano. Só não gostava bastante de matemática, física e química. Estudava essas três matérias para passar de ano. As outras, entretanto, estudava por prazer… então, tinha notas boas. Por causa dessas três matérias, a média ficava entre o regular e o bom… elas nunca me agradaram. Depois fui para Porto Alegre, para a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lá me formei em 1950.
Eu me formei em Direito, mas o meu pai era pecuarista. No início é muito difícil para um advogado novo abrir uma banca… e ganhar a vida com o trabalho profissional dele. O meu pai não se importava com isso. Considerando o espírito conservador do meu pai, ele achava que eu devia ficar morando na casa dele, não se importava de continuar dando uma mesada… enfim eu não teria nenhuma falta. Porém, isso me desagradava porque não tinha um prazo para começar a ganhar dinheiro. Meu pai achava que, tendo eu um diploma universitário, era quase uma diminuição eu empregar-me.
Eu não queria ir para uma estância – como se diz no Rio Grande do Sul – porque não tinha gosto por aquele tipo de atividade. Então, meu pai achava que seria uma diminuição, com meu curso universitário, eu me empregar. E eu queria ganhar dinheiro para me sustentar, não me sentia bem em continuar recebendo mesada. Resolvi partir para o Rio de Janeiro… a mil e quinhentos quilômetros de distância!
Em 1956, vim para o Rio, queria ganhar a vida pelo meu esforço… sem me valer das amizades do meu pai. Aconteceu um caso meio estranho na minha vida. Entrei numa agência de empregos. Dou risadas quando digo que entrei no serviço publico através de uma agência de empregos… isso é raro. Entrei no CAPES, o nome era imenso: Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. O diretor… na verdade o título dele era secretário-geral, era o doutor Anísio Teixeira. Ele havia chamado um técnico americano… especialista em educação. Esse fulano falava português, mas falava mal e escrevia pior ainda. O que Anísio Teixeira fez? Como ele queria o trabalho desse americano, dirigiu-se a uma agência de empregos procurando alguém com facilidade em redação e que falasse inglês. Eu havia me inscrito vinte dias antes e fui chamado. Parece-me que esse americano ficou dois anos… não sei exatamente quanto tempo, depois ele foi embora e eu permaneci. Foi assim que eu entrei no serviço público.
Senti uma grande diferença entre o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro. Primeiro de ordem econômica, na casa dos meus pais tinha uma vida com todo conforto, sem qualquer preocupação material. No Rio, eu ganhava um salário pequeno. Tive que alugar um quarto de apartamento em Copacabana, onde eu era o único inquilino. De qualquer forma, tinha dinheiro suficiente para alugar o quarto, alimentar-me, vestir-me, pagar minhas contas… essas coisas todas. Isso foi uma modificação imensa na minha vida. Antes nunca tive que trabalhar para ganhar dinheiro… só havia estudado. Entretanto, gostei porque pela primeira vez estava me mantendo com meu esforço… apesar de ter baixado muitíssimo meu padrão de vida.
No que refere ao machismo, acho que no Rio antes existia machismo e ainda continua a existir, mas no Rio não há sua valorização. As pessoas são machistas, mas não se vangloriam de o ser. Enquanto no Rio Grande do Sul elas se vangloriam! Porém, no frigir dos ovos, isso não faz muita diferença… são machistas cá e lá. A diferença é que um assume o machismo e o outro o faz de uma forma disfarçada.
Acontece que também sou de uma família católica. Quando adolescente, fui muito ambivalente – como as pessoas o são em geral -, tinha atração por homens e por mulheres. Pelas mulheres achava que era correto, pelos homens achava que era incorreto… por causa da cultura e do meio em que vivia. Então, quando mantinha um relacionamento homossexual era atingido por um sentimento de culpa. Neste caso, em termos estatísticos, tinha mais relacionamentos heterossexuais que homossexuais. Depois que vim para o Rio continuei assim. Um belo dia resolvi que era melhor ser exclusivamente homossexual.
Nesta história desenvolvi um raciocínio crítico, talvez meio engraçado aos outros… mas não a mim. Por exemplo, quando tinha relação com uma mulher, primeiro ela achava que havia feito uma grande coisa por mim… e, na verdade, ela tinha tido tanto prazer quanto eu. Se no dia seguinte dissesse a ela: “Olha! Ontem eu tive relação com um homem.” Ela ficaria furiosa comigo, dizendo: “- O que é!… Bicha! Viado!” Enfim, qualquer coisa do gênero, mas sempre no sentido de me considerar um degenerado. Quando eu tinha relação com um homem e lhe contava: “- Olha! Ontem eu tive relação com uma mulher.” O homem não fazia nenhum comentário… ou no máximo perguntava: “- Ah! Que tal? Foi boa a foda?”… e pronto.
Desagradava-me ver, nas mulheres com quem eu tive relações sexuais, este sentimento de possessividade, em relação a mim. Não gosto que uma pessoa pretenda que eu pertenço a ela. E tal reação nunca encontrei em meus parceiros do gênero masculino. Desde menino… e até hoje, com sessenta e sete anos, nunca gostei, mais, irrita-me intensamente.
Aborrecia-me a idéia de, para as mulheres, ter de esconder que mantinha relações sexuais com homens. Por que elas tinham o “direito” de obrigar-me a fingir?
Achei que era muito estúpido, de minha parte, admitir que uma criatura qualquer me impusesse um determinado comportamento na cama. Detestava, também, a perspectiva de eventuais “descobertas” virem a provocar discussões, por causa da minha ambivalência.
Pareceu-me que urgia tomar uma decisão. Matutei sobre o ponto e verifiquei que podia continuar a ser bissexual ou, então, optar pela homossexualidade exclusiva. O que não poderia era cingir-me a uma atitude exclusivamente heterossexual, sem me sentir frustrado.
Ora, se tinha de decidir-me, de tomar uma única via, preferi a homossexual, apesar de saber que era a mais difícil, pelos ônus disso decorrentes. Evidentemente, teria de enfrentar os preconceitos da sociedade.
Isso foi há uns quarenta anos. Apesar dos percalços, nunca me arrependi da resolução tomada.
Eu tomei essa resolução entre 1956 e 1957, mais ou menos com vinte e nove ou trinta anos. Nesse período, vivia meu pequeno mundo individual… levava a minha vida. Meu cotidiano era acordar cedo, tomar banho, tomar café, tomar o ônibus, ir para o serviço, trabalhava, trabalhava, trabalhava, tomava o ônibus, voltava para casa, tomava banho e, de vez em quando, freqüentava o cinema, dava uma volta, tinha algum relacionamento homossexual… era isso!. Sempre separei a parte afetiva da parte sexual. Isso sempre facilitou os relacionamentos. Tanto quando tinha relações com mulheres e homens, quanto quando passei a ter relações exclusivamente com homens. Nunca quis ficar preso afetivamente a alguém. Sempre dei muito apreço a liberdade… sentia que eu não era de ninguém, assim como não me interessava em ter alguém.
No Rio, era possível levar uma vida de liberdade. Eu, apesar de ter aceitado minha homossexualidade, não tive, de chofre, a coragem de assumi-la publicamente. Por prudência, escolhi o processo de soft opening . Já não mais mentia, não procurava passar pelo que não era, mas esforçava-me para não me mostrar aos “da outra banda”, sempre que possível. Entre a faca e a parede, abria o jogo, mas empenhava-me em evitar a necessidade de uma definição.
A situação faca/parede aconteceu poucas vezes, pois, há, no Brasil um modo de viver muito hipócrita: a filosofia do “você-faz-que-se-esconde-e-eu-faço-que-não-vejo”. Isso, pessoalmente, àquela época, favoreceu-me, pois sou – ou penso ser – do tipo “homossexual discreto”.
Cabe notar que, no meu entender, a referida hipocrisia é o fator que mais prejudica o movimento de defesa dos direitos dos homossexuais, pois mascara a realidade. Oprimido e opressor concordam tacitamente em participar de um jogo de esconde-esconde. Obviamente, quem perde é o oprimido, o qual, por medo, é até capaz de agradecer ao opressor. Lamentável, mas…
No que refere à prostituição masculina, pontos de encontro, não observo nenhuma diferença entre os anos cinqüenta, sessenta e a contemporaneidade. Havia boates gay s, bailes gay s… havia pessoas que davam festinhas. Nunca fui à festinhas porque não é do meu temperamento, mas era muito comum. No Brasil, noto uma única diferença em relação aos homossexuais – superficial, mas importante -, não pelo o que ela é atualmente, mas pelo que foi e ainda está se semeando: o tratamento do tema nos meios de comunicação social e nos meios intelectualizados. A diferença está nesse nível, aparecem assuntos nos jornais que seriam inconcebíveis naquele tempo. A mídia… como gostam de dizer hoje em dia, e os intelectuais – macaqueando os americanos -, acreditam ser de bom tom não ter preconceito. Antes não havia essa reserva, as pessoas podiam ter preconceito abertamente… até descaradamente! Ele era aceito com a maior naturalidade, às vezes era considerado como uma atitude elogiável. Porém, no que refere à massa… não observo qualquer diferença!
Quando digo “a massa”, não estou falando no sentido político… na questão do operário, mas, sim, da maioria da população, em geral. A situação continua igual, somente uma partezinha da sociedade… esse pessoal dos meios de comunicação social, os intelectuais e alguns políticos – em geral pessoas de classe média – esses mudaram… mas isso não é muito. Naquele época, não havia nenhuma possibilidade de trabalhar com a homossexualidade no Brasil. Isso era uma coisa que nem me passava pela cabeça. No Brasil de quarenta anos atrás não havia clima para um jornal como o Lampião … hoje em dia há para publicações como o Ent& , Nós Por Exemplo , Sui Generis … isso era inconcebível!!
Certamente a homossexualidade já era uma preocupação de todos os homossexuais, mesmo dos que dizem não estar preocupados com ela… os que dizem isso mentem! Não é possível deixar de se preocupar. Trata-se de um debate básico sobre a situação do indivíduo no país. O fato é que com o passar do tempo, lentamente comecei a despertar… a prestar atenção no tal sistema do “Eu faço que me escondo e você faz que não me vê”. Esta situação vinha me aborrecendo. Percebia que aquilo dava aos outros uma oportunidade de chantagem. Não uma chantagem explícita, mas implícita. Fosse no ambiente de trabalho, familiar, entre amigos, enfim, em qualquer lugar. Havia a possibilidade de alguém dizer: “- Olha que eu sei! Olha que eu conto!” Ninguém dizia isso expressamente, mas essa questão ficava no ar.
Eu ficava pensando: “Mas como um sujeito, como eu, que trabalha, que é honesto, que cumpre seus deveres sociais como cidadão, que nunca infringiu nenhum dispositivo do Código Penal, pode merecer o desprezo e sofrer discriminação dos demais (aí incluídos os socialmente nocivos) pelo simples fato de ir para a cama com outro do mesmo gênero, maior de idade, sem violência, para mútuo prazer?”
Depois de raciocinar muito sobre a questão, achei que era hora de revoltar-me, negar-me a aceitar a categoria de indivíduo de segunda classe, pois, no meu entender, não havia motivo para tal.
Ainda não sabia, naquele momento, como agir, mas estava certo de que eu precisava fazer algo contra o estado de coisas. Omitir-me seria uma capitulação. Como diz o ditado: “Não está morto quem peleja”.
Em 1972, fui passar férias em Porto Alegre. Os meus pais moravam lá e costumava visitá-los. Eu continuava tendo alguns amigos em Porto Alegre e quando ia à cidade também os visitava. Um deles tinha morado alguns anos na Inglaterra. Neste período, em que estive lá, ele tinha recebido de um amigo dele, um inglês, duas publicações: um jornal que se chamava Gay Sunshine , era americano de San Francisco na Califórnia; e um outro jornal inglês, não lembro se chamava Gay News ou Out … não lembro exatamente do nome. O jornal inglês era semanal ou quinzenal, enquanto o americano aparecia de três em três meses. Devido a periodicidade, o Gay Sunshine era completamente diferente. Ele era constituído por artigos, alguns deles muito interessantes, assim como por grandes entrevistas… algumas eram “grandes” no sentido de serem excelentes, outras eram pura e simplesmente extensas. Havia entrevistas, por exemplo, com Gore Vidal, o Tenessee Williams… está me fugindo o nome do inglês que escreveu A Single Man … esse filme Cabaret foi baseado no seu livro. Ele morava nos Estados Unidos… Christopher Isherwood.
Por volta de 1972 ou 1973, voltei ao Rio e passei a assinar esse jornal. Ele trazia uma seção sobre livros. Comecei a encomendar livros dos Estados Unidos. Até então, nunca tinha visto livros tratando de forma séria a questão da homossexualidade. No Brasil só havia livros extremamente machistas, referindo-se como doença ou vício… Não havia ensaios antropológicos, sociológicos, históricos ou coisas do gênero. No mais eram contos ou romances, onde apareciam situações de homossexuais… vistos de maneira extremamente favorável. Porém. era uma subliteratura. Na verdade, nem sei se li dois livros ou até mesmo um livro desse gênero… porque é uma coisa que nunca me agradou. Não só pelo ponto de vista intelectual, mas porque não me excitava e não me excita até hoje. Não tenho nada de voyeur, nem me agrada a pornografia… isso não me excita de forma nenhuma.
Os livros sérios eram sempre muito moralistas. No Brasil, somente de uns quinze ou vinte para cá… especialmente nos últimos dez anos, começou-se a se escrever mais sobre a homossexualidade. Inclusive mais homossexuais começam a escrever sobre a homossexualidade. Naquela época, especialmente os homossexuais não se atreviam, pois não queriam aparecer de peito aberto. O Mário de Andrade, por exemplo, era homossexual… todo mundo sabe disso, mas ele nunca levantou nenhuma bandeira… muito pelo contrário! O Manuel Bandeira também… e agora muito recentemente sabe-se que o Pedro Nava também era. Porém, não havia clima para essas pessoas naquela época. Na universidade, de uns dez, vinte anos para cá, é muito grande o número de teses, cujo núcleo se concentra no tema homossexualidade.
Quando comecei a ler o jornal Gay Sunshine e conheci os principais jornais gays ingleses… passei a ler tudo o que podia sobre o tema. Assim, tomei conhecimento do movimento existente nesses países, do Gay Liberation , de Stonewall . Li um livro muito importante que se chamava Homosexual, Opression and Liberation … era a tese de Dennis Altman, professor da Universidade de Sydney, na Austrália. A partir de então, fiquei interessado no movimento homossexual, nos fundamentos que nunca tinha racionalizado antes… e fiquei a sonhar com o aparecimento do movimento no Brasil. Aquela época quase ninguém, no Brasil, falava, ou escrevia, sobre o assunto. As pessoas não sabiam nada do movimento, não sabiam nada de Stonewall… nem o antes e nem o depois. Estou falando tanto de Stonewall… até parece que acho este fato um grande acontecimento! Porém, sou do grupo que não supervaloriza Stonewall. Para mim foi um episódio.
Porém, aquilo ficou ruminando na minha cabeça. Minha mãe costumava dizer que eu era teimoso… gosto de dizer que sou tenaz! Realmente, quando algo entra na minha cabeça é difícil sair… pelo menos tento conseguir colocar a idéia em prática. Então, recebia os jornais, recebia as revistas, recebia os livros, mas fui vivendo assim como uma Avis Rara… não estava dando a menor importância a isso. Lamentava, contudo, que meu interesse sobre o tema não fosse compartilhado por meus compatriotas homossexuais.
Um belo dia, acho que em 1976 ou até mesmo antes… em 1974, recebi uma carta do diretor do jornal Gay Sunshine , em plena ditadura militar… o nome dele é Winston Leyland. Ele perguntava se eu poderia escrever um artigo sobre a situação dos homossexuais no Brasil. Ele sabia que havia uma ditadura militar, disse que meu nome não apareceria… assim eu escreveria em inglês, ele corrigiria os erros e publicaria. Eu disse: “- Tanto faz aparecer ou não o meu nome! O artigo é para os Estados Unidos!” Então escrevi o artigo e foi publicado. Depois vim a saber de um fato ilustrativo… eu era o único assinante do jornal em toda a América Latina!
Em 1976, recebi uma segunda carta deste Winston Leyland… ainda como dono do mesmo jornal. Ele dizia ter apresentado um projeto a National Endownment for the Arts , para uma antologia de artistas plástico e escritores gays brasileiros, e que esse projeto tinha sido aprovado. Isso significava que ele receberia uma pequena ajuda financeira… Esse National Endowment for the Arts é um órgão, um instituto criado pelo Congresso Americano – Senado e Câmara Federal de deputados dos Estados Unidos -, que dá prêmios a projetos aprovados em todos os campos das artes: teatro, cinema, música, literatura e assim por diante. Ele dá pequenos prêmios que ajudam financeiramente e dão certo prestígio às iniciativas selecionadas.
Winston Leyland dizia ter recebido esse prêmio… e que gostaria muito de vir ao Brasil, mas não podia porque os hotéis eram muito caros e o prêmio era pequeno. Naquela época, eu morava em Copacabana, mas tinha um pequeno apartamento em Ipanema… o qual mantenho até hoje. Esse apartamento era uma garçonnière … naquele tempo se usava esta palavra que agora está fora de moda. Era um lugar onde levava alguém que não queria levar na casa onde morava… era muito prático. O local era mobiliado com muita simplicidade, localizado num bom prédio. Neste caso, pensei: “- Bom! Esse sujeito pode contribuir para a eclosão de um movimento semelhante aqui no Brasil. Se tenho vontade que isso aconteça, ele, talvez, venha ajudar a concretização da minha idéia!”
Outro ponto de reflexão era o seguinte: “- O trabalho que esse sujeito fará nos Estados Unidos será necessariamente péssimo. Se ele fosse fazer uma antologia de artistas plásticos e escritores brasileiros, sem se ater aos homossexuais, já encontraria muitas dificuldades, pois essas áreas são mal conhecidas lá. Nos Estados Unidos há poucas traduções da literatura brasileira.”… ainda mais há vinte anos atrás. Então pensei: “- Esse livro vai ser uma porcaria total! Uma coisa horrorosa! Eu podia dar uma contribuição, convidando Winston Leyland para ficar na minha garçonnière .
Na época, minha mãe já estava vindo para o Rio de Janeiro… ela passava os invernos comigo. O meu apartamento era em Copacabana, no posto 6, assim não haveria lugar para ele ficar lá. O apartamento era pequeno, tinha só dois quartos. Portanto, não poderia hospedá-lo. Além do que, minha mãe não se sentiria bem com um estranho. Ela não falava inglês e ele não falava uma única palavra em português. Escrevi a ele dizendo que minha garçonnière estava à disposição para ele se hospedar… e que podia fazer as refeições com a minha mãe e comigo em Copacabana, pois ficava próximo. E ele aceitou.
Ele avisou que viria dentro de dois ou três meses. Nesse meio tempo eu agendaria tudo. Então, pensei: “- Agora, tenho que saber quem são os escritores gays brasileiros?” Nunca tinha me preocupado com isso, pois gosto de ler bons escritores… não importa se são homossexuais ou heterossexuais! No Brasil não lembrava de ninguém, mas comecei a pesquisar… e entrei em contato com uma série de pessoas. Uma vez fui a São Paulo e conheci o Darcy Penteado. Havia lido uma tese do Peter Fry. Conhecia rapidamente um crítico de arte… na época trabalhava no Correio da Manhã , Francisco Bittencourt… ele também fez jornalismo junto ao Jornal do Brasil… parece que era gaúcho. Conhecia, muito superficialmente, o Aguinaldo Silva. Através deles foram aparecendo outros e fui entrando em contato com eles.
Comecei a entrar em contato com jornalistas, coisa que não tinha até então… isso já deve ter sido por volta de 1977. O trunfo que tinha… a deixa, era o fato de Winston Leyland ter recebido esse prêmio da National Endownment for the Arts . Enterrando, eu fazia uma pequena escamoteação… dizia que ele havia recebido o prêmio do governo dos Estados Unidos… o que não é uma mentira! Realmente, a National Endownment for the Arts é um órgão do Congresso dos Estados Unidos, sendo que o Congresso é o legislativo federal dos Estados Unidos, logo é parte do governo. Porém, quando se diz: “- Do governo…!!!”, logo se pensa no governo federal ou no executivo federal.
Nesta época o presidente era o Nixon. Havia uma onda moralista, como em toda as ditaduras. Não podia haver revista pornográfica… isso não aparecia! Para conseguir uma, era só por debaixo do pano. As bancas não podiam vender de maneira nenhuma, muito menos expor. Nem vedando as imagens com papel celofane ou sem celofane, com plástico ou sem plástico… não adiantava! Então, o fato de o governo dos Estados Unidos, a metrópole, subvencionar uma antologia de artistas plásticos e escritores gays latino-americanos era um escândalo, algo inaudito.
Os jornalistas, evidentemente, deliciaram-se com a notícia. Nixon financiando um livro de temática gay …
Consegui, assim, sem dificuldades, uma série de artigos e notas em muitos jornais do Brasil. Não só do Rio e de São Paulo, mas também de lugares como Fortaleza, Recife, Natal, Porto Alegre, Salvador, Belo Horizonte e outras cidades onde Winston nunca pôs os pés.
Vale notar que a única publicação que, ao saber que o Winston Leyland era ativista gay , negou-se a entrevistá-lo foi o Jornal de Letras , à época – creio – o único periódico literário do Rio.
Afinal, já bem preparado o terreno, Leyland chegou ao Brasil.
Na minha vida, tenho umas passagens que são meio engraçadas… meio diferentes. Uma delas, por exemplo, foi ter entrado no serviço público por uma agência de empregos. A outra foi ter me assumido publicamente – pela primeira vez – através da imprensa.
Quando o Winston chegou, eu já tinha conseguido uma série de entrevistas. Nessa época, essa minha garçonnière não tinha telefone. Era muito difícil conseguir telefone… também nem havia muita necessidade! Como o Winston não falava português, eu servia de intérprete. E como os jornalistas queriam um ponto de referência, dei o meu telefone. Neste período, minha mãe estava hospedada comigo para passar uma temporada. Assim, a primeira notícia em jornal que apareceu publicamente, foi que o Winston estava hospedado comigo e deram o número do telefone. Houve uma primeira página no suplemento literário do JB , outra no Segundo Caderno do Globo e em muitos outros jornais. Houve uma entrevista de quatro ou cinco páginas no Pasquim … no período era um jornal alternativo muito vendido. Como pessoa o Winston não tem nada de especial. Ele não é particularmente dinâmico. É… uma pessoa comum intelectualmente!
Também estabeleci contato com vários escritores. Como conhecia Gasparino Damata, procurei ter mais contato com ele. Os outros foram aparecendo através deles ou, ao ver meu nome no jornal, telefonavam, dizendo estar interessados em participar desta antologia. O contato pessoal com alguns desses escritores e jornalistas, fez-me pensar: “- Bom! Se o Winston conseguiu fazer um jornal destes nos Estados Unidos, onde há tanta concorrência… Se ele pode desenvolver esse trabalho há tantos anos, nós aqui poderíamos fazer algo igual ou melhor!?”
Havia uma boa revista, mas heterossexual… chamava-se Senhor . Essa revista me chamou a atenção, pois ela publicou uma entrevista com o Darcy Penteado… um ou dois anos antes. Nela o Darcy falava abertamente sobre a homossexualidade dele. Naquela época, isso era um escândalo! Pensei em nos dirigimos a revista Senhor . Ir consultar a possibilidade deles publicarem uma seção, onde nós trataríamos de homossexualidade de uma forma séria, ainda desconhecida no Brasil… nunca eu tinha visto nada publicado assim, muito menos num periódico!
Assim, fiz esta proposta a um grupo formado pelo Darcy Penteado, Gasparino Damata, Francisco Bittencourt, Aguinaldo Silva, Clóvis Marques e Adão Acosta – este último era jornalista da Última Hora . Alguns entraram depois, como João Silvério Trevisan, Antônio Chrysóstomo, Peter Fry e teve um sujeito de São Paulo que foi indicado… um belga: Jean Claude Bernardet!
Desta forma, refletiu-se muito sobre a idéia. Na mesma ocasião, parece-me que o Aguinaldo Silva disse o seguinte: “- Mas… por que nós não fazemos um jornal?” Eu disse: “- Não! Um jornal é uma coisa muito cara!” Eu imaginava que o jornal tinha de ter o prédio, a impressora e outras coisas. Ele disse: “- Não! Não é necessário.” Na época, ele era copy-desk de O Globo . Além disso, começaram a circular alguns jornais alternativos. Havia um periódico, mensal, que se chamava O Beijo … surgiu pouco antes do Lampião . O Aguinaldo disse: “- Tem esse jornal O Beijo que foi…” e falou sobre a quantidade de capital necessário… não me lembro qual era o valor, mas era uma quantia mínima. Depois, acho que era levado ao Jornal do Comércio para ser impresso. Então eu disse: “- Ah! Bom, sendo deste modo… está ótimo.” Assim, nasceu a idéia do Lampião .
O período da “abertura” teve importância… resolvemos tentar porque o Geisel decidiu fazer a tal “abertura lenta, gradual e segura”, porém não sabíamos no que aquilo poderia dar. Nós tentaríamos, não sabíamos se eles iriam abafar ou nos prender… o fato é que tínhamos de tentar. Então, a “abertura” ajudava. Não haveria clima se não fosse isso. Mesmo assim fomos processados por ofensa a moral e aos bons costumes. De uma maneira genérica, eles processaram todo o corpo editorial do Lampião . Éramos onze, acho que disse o nome de todos: Darcy Penteado, Peter Fry, Jean Claude Bernardet – que nunca escreveu nada no jornal e era muito enrustido, ele dizia à época que tinha uma filha com ódio à bichas -, Antônio Chrysóstomo, Aguinaldo Silva, João Silvério Trevisan, Francisco Bittencourt, Gasparino Damata, Adão Acosta, e Clóvis Marques – acho que este último ainda é jornalista do Jornal do Brasil .
No que refere ao movimento homossexual, houve o seguinte… quem tinha vontade daquele movimento era eu… quem estava a par do movimento era eu. O João Silvério Trevisan era o único que tinha alguma noção além de mim. Ele havia morado nos Estados Unidos. O Trevisan possuía a idéia do Gay Liberation … que é uma atitude filosófica de contestação plena, completa e radical. Algo um pouco diferente da minha posição… nunca fui do Gay Liberation . Nesse meio tempo, já conhecia bem o Gay Liberation porque estava com uma bibliotecazinha sobre o assunto. Os outros nunca tinham ouvido falar em movimento, nem o Aguinaldo… o Darcy também não.
No núcleo fundador do Lampião , havia uma parte que era de São Paulo: o Darcy, o Jean Claude Bernardet, o João Silvério Trevisan – eles moravam em São Paulo – e o Peter Fry – era professor em Campinas na época; e havia outra parte que era do Rio: o Francisco Bittencourt, o Aguinaldo Silva, o Gasparino Damata, o Clóvis Marques, o Adão Acosta, o Antônio Chrysóstomo e eu. Ficou marcado que a cada mês haveria uma reunião numa das cidades, uma vez no Rio e a outra em São Paulo… para discutir a pauta do próximo número. Isso foi feito só no primeiro número.
O Aguinaldo Silva ficou encarregado da direção, mas ele nunca tinha ouvido falar nada do movimento. O Aguinaldo sempre assumiu a homossexualidade dele. Quando ele chegou aqui ao Rio… ele até se maquiava, saía lá pela Cinelândia, mas provavelmente com o objetivo de encontrar um parceiro… não havia compromisso com a questão de ordem social. E o Aguinaldo tomou o jornal. Não há dúvida nenhuma que o Aguinaldo é um homem muito trabalhador, mas o que tinha sido proposto deixou de ser. Ele ficou com a direção do jornal, com as assinaturas, com a distribuição, com a pauta… dou risadas quando questiono o que sobrou!! Ele se preocupava muito com a questão de travestismo… gostava do assunto! Não sei até se ele foi travesti… isso não sei! Cansei de vê-lo se pintar, andar com travestis, mas nunca o vi vestido de mulher.
Desde o início, já vi que o jornal nunca seria um órgão do movimento… por causa do papel predominante do Aguinaldo. Ele não sabia nada sobre o assunto, nem se importava com isso. Mesmo assim, achei que devia prestigiar o Lampião , pois parecia-me que era melhor ter este jornal do que não ter nada. Como tive interesse na vinda do Winston para cá – justamente com essa esperança – pelo menos algo tinha se realizado. Imaginava que o Lampião poderia agir como um catalisador…. o que acabou acontecendo! Os grupos começaram a surgir.
Havia um grupo que surgiu pouco antes do aparecimento do Lampião : o SOMOS de São Paulo. João Silvério Trevisan e Edward MacRae pertenceram a esse grupo. O Edward é filho de escoceses, ou filho de escocês… não sei se a mãe era brasileira. Ele se educou na Escócia… ou na Inglaterra, então já pelo domínio da língua ele estava a par do movimento homossexual. Esse grupo SOMOS não tinha nada a ver com o jornal. Ele participava muito nessa filosofia do Gay Liberation … em grande parte, suponho ter sido influência do Trevisan.
O jornal Lampião ajudou na criação de vários grupos. Alguns deles tiveram existência muito efêmera… mas ele ajudou! Pela primeira vez, apareceu um órgão de imprensa periódica… aparecia todos os meses e era realmente periódico. Havia pessoas que sabiam escrever, não eram debilóides, não estavam escrevendo pornografia… tratavam os assuntos com seriedade. Porém, sob a orientação do Aguinaldo, o jornal cada vez mais se afastava da minha idéia. Então, achei melhor dar minha cota ao Francisco Bittencourt. Pensei comigo: “- Bom! Não vou combater o jornal de maneira nenhuma! De qualquer forma, acho que ele é mais do que nada… mas vou me retirar.” Assim, saí do jornal.
O Lampião ajudou, especialmente, a haver o despertar… demonstrar a muita gente que os homossexuais podiam fazer alguma coisa. Eles também poderiam atuar num outro campo, visto o que o grupo do Lampião estava fazendo… então, acho que foi isso: auxiliou. Porém, depois os grupos brigaram com o Aguinaldo. Nem me lembro direito porque foi, mas… em linhas muito gerais, era porque queriam que o Lampião desse apoio numa forma e num grau que o Aguinaldo não estava disposto E o jornal era o Aguinaldo. Como já disse, ele nunca deu importância ao movimento como uma questão de ordem social. Nunca conversei com ele a esse respeito… assim não sei dizer precisamente, mas tenho a impressão que para ele era mais importante a afirmação individual. É um pensamento radicalmente contrário ao meu… acho que o estamento social é mais importante!
Após minha saída o jornal continuou a existir… de 1978 até 1981. Foi justamente com a “abertura” que jornais contestatórios, como o Pasquim e o Lampião , passaram a ser ultrapassados. Houve mais liberdade… o que era publicado pelos alternativos significava metade do que os outros diziam. Apareceram também as revistas com nus e com outras questões mais abertas. Então, aquele tipo de imprensa já não tinha mais razão de ser… o Lampião perdeu a função!! Tanto que teve de fechar. Além do que, o Aguinaldo vivia brigando… não sei se o Trevisan fala a esse respeito? Inclusive uma das pessoas com quem ele brigou foi o Trevisan… parece até que foi com quem ele mais brigou! Depois, o Aguinaldo criou uma revista… escancaradamente dele. Parece-me que esta revista durou dois ou três números e teve de fechar.
Certa vez, fui a um congresso… acho que era na Casa do Estudante Universitário – CEU -, lá no morro da Viúva, e vi uma sujeito do qual gostei. Ele me impressionou. Achei-o uma pessoa séria: Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia. Entrei em contato e passei a trabalhar com ele. Porém, eu atuava no Rio de Janeiro e ele em Salvador. Eu fazendo pesquisas e escrevendo cartas para ele, dando palpites sobre orientação… essas coisas todas. Quando foi em 1985, aproximava-se a questão da Constituinte, assim achei melhor me desligar do Grupo Gay da Bahia… no sentido de criar um grupo aqui no Rio. Foi assim que nasceu o Triângulo Rosa.
O nome foi escolhido com base num fato histórico, o qual muita gente não conhece. Os nazistas prendiam, encarceravam e punham em campos de concentração todos aqueles que eles sabiam, ou desconfiavam, ser homossexuais. Nos campos de concentração nazistas, todos tinham que usar um distintivo: os judeus tinham que usar uma estrela de Davi (uma estrela amarela de seis pontas); os homossexuais tinham que usar um triângulo rosa equilátero… com a ponta apontada para baixo. Provavelmente foram mortos uns trezentos mil homossexuais. Eles eram encarcerados e a maioria morreu. Então, em homenagem a todos os que morreram, foi escolhido este nome: Triângulo Rosa. Os homossexuais tinham que usar este distintivo porque eram obrigados… aquilo era um rótulo. Dentro dos campos de concentração, eles também eram desdenhados pelos próprios presos que estavam lá: judeus, ciganos, testemunhas de Jeová, políticos. Os homossexuais eram considerados a categoria mais baixa por todos presos. Assim, escolhemos o nome em homenagem a estes homossexuais que tinham de usar aquele rótulo. Com isso, queremos dizer que nos orgulhamos daquele símbolo e pretendemos assim homenageá-los. Foi essa a razão do nome Triângulo Rosa.
Antes do governo de Hitler – antes de 1933 – havia o artigo 175 do código penal alemão, o qual punia a homossexualidade… não somente a prática homossexual, mas a homossexualidade em geral. Esse artigo prevaleceu durante o período de Hitler. Quando terminou a guerra, ele continuou em vigência… assim, os homossexuais foram os únicos que não receberam compensação pelos prejuízos de guerra. Na Alemanha daquela época, assim como há pouco tempo na Alemanha Ocidental, os homossexuais não podiam se apresentar como tal… não só porque havia o preconceito, mas principalmente porque era crime. Caso fossem reivindicar alguma coisa, eles sairiam de um campo de concentração e iriam para uma prisão. Não se sabe a quantidade exata dos que morreram… a estimativa fica em torno de sessenta mil a trezentos mil. Não se sabe por duas razões: primeiro porque quando se aproximava o fim da guerra… e a derrota estava certa, os nazistas queimaram muitos arquivos.
Pode-se questionar essa disparidade de estimativas. Como os judeus sabem que o holocausto gerou seis milhões de vítimas!? É porque houve judeus, como o Simon Weisensthal, que passaram a se orgulhar de ser judeus… a não ter vergonha nenhuma! E com o apoio dos governos da Alemanha, especialmente dos Estados Unidos e da Inglaterra, foi possível levantar este número. Os homossexuais não tiveram apoio, como os judeus, para resgatar esse período histórico.
O Triângulo Rosa era um grupo muito característico… diferente dos demais! Nós sempre nos preocupamos com a questão da legislação… vamos dizer assim, com a parte pensante do Brasil. No caso, seria com aqueles que poderiam ter influência: intelectuais, meios de comunicação social e legisladores. Nossa principal bandeira era conseguir fazer uma constituição que proibisse a discriminação por orientação sexual… no mesmo item que aparecesse a proibição de discriminação por raça, cor, religião. Entretanto, esta não era a única preocupação… mas a que considerávamos principal. O que seria um fato único… talvez pela a primeira vez no mundo. Atualmente, isso já existe em certas províncias do Canadá. Então, fizemos este trabalho.
Em 1987, pela primeira vez – até agora a única! -, o Triângulo Rosa conseguiu ir à Câmara Federal… ao Congresso Nacional Constituinte. Lá, fiz exposição à duas subcomissões… parece que isso foi em abril. O assunto foi levado a plenário e fomos derrotados… a última votação na Assembléia Nacional Constituinte foi em fevereiro de 1988. Fui à Brasília… nunca um ativista gay tinha entrado no Congresso Nacional como tal. Muito menos para fazer uma exposição e ser sabatinado pelos parlamentares… isso foi um escândalo!
A imprensa noticiou muito, alguns jornais meio em tom de troça, outros apoiaram, outros descreveram o fato objetivamente, mas houve uma grande cobertura… inclusive apareci na parte dedicada à Constituinte do Jornal Nacional da Rede Globo. Depois, uma das questões emergentes era eu aparecer como pessoa publica no escândalo que foi causado. Hoje em dia não causa escândalo fazer isso.
Houve a votação no início de 1988, acho que foi janeiro ou fevereiro… fomos derrotados. Nos fins de fevereiro e princípios de março de 1988, saiu o primeiro projeto da Constituição Federal. Por essa época, eu me afastei do grupo Triângulo Rosa. Depois retomei quando se aproximava a Revisão Constitucional. Porém, dizia que voltaria até terminar a Revisão… qualquer que fosse o resultado. Na Revisão, também fomos derrotados. Desta vez não houve esse sucesso de escândalo… Com este nosso trabalho, não conseguimos ser contemplados na Constituição Federal, mas conseguimos em duas Constituições estaduais: a de Sergipe e a de Mato Grosso; e em 27 leis orgânicas municipais… inclusive do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador.
Quando eu me afastei, em fins de fevereiro, princípios de março de 1988, fiz o seguinte: deixei para o grupo a parte dos arquivos que era mais do Triângulo Rosa; a outra parte que era mais do meu arquivo pessoal – fiquei com medo de ser perdida, grande parte da correspondência era de minha iniciativa -, então resolvi mandar para o Arquivo Edgard Leunroth, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da UNICAMP… aquele acervo que está em Campinas pertencia a meu arquivo pessoal.
O Triângulo Rosa, como em toda a entidade sem fins lucrativos, depende muito do presidente, do secretário… de duas ou três pessoas, às vezes até de uma pessoa com uma influência muito grande. É algo lamentável, mas isso é assim… tanto num grupo de ativistas gays , como num de apicultores, de filatelistas ou de qualquer coisa assim.
Pode-se questionar o por quê em escolher a UNICAMP, sendo que eu trabalhava no Rio!? Fiz isso porque o SOMOS, grupo que se dissolveu muitos anos antes, doou seu arquivo para a UNICAMP. E depois uma dissidência dos SOMOS… um grupo pequeno chamado Outra Coisa, também tomou a mesma atitude. A UNICAMP sempre teve uma mentalidade mais aberta, tanto que o Peter Fry durante muitos anos foi professor lá, o Luiz Mott também… e aquele rapaz argentino que morreu de AIDS há pouco tempo?… Néstor Perlongher. É bom para o historiador, para o pesquisador social, poder consultar esse material todo no mesmo local… foi por isso que mandei meu acervo pessoal para a UNICAMP.
In: Reinventando o Sonho: História Oral de Vida Política e Homossexualidade no Brasil Contemporâneo
de Cláudio Roberto da Silva
Dissertação de Mestrado em História Social apresentada à Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Orientador : Prof. Dr. José Carlos Sebe Bom Meihy, São Paulo, 1998
