Um dia o Rio amanheceu mais triste. Marlene Casanova, por vontade própria e ressentida com a “ladeira abaixo” da cultura GLS, fez as malas, disse adeus a mundana noite carioca e veio residir em Salvador. Desde então não tem sido fácil para ninguém. Há gente que até hoje não se esquece da estrela – e não sabendo do seu paradeiro – inventam lendas a seu respeito. Outros, mais saudosistas, lhe rendem homenagens de toda ordem. Há inclusive pessimistas natos que já a imaginavam purpurina no céu. Mas a história existe para que, tijolinho por tijolinho, possamos construir um monumento sem limites.

Então, como numa questão de honra, resgatamos a personalidade desta que foi – sem a menor dúvida – uma das mais poderosas das nossas travestis nos anos setenta: Marlene Casanova. Sejamos sinceros, a simples menção deste nome já nos transporta para uma era em que talento e travestis eram sinônimos e caminhavam juntos. A Marlene canta, dança, apresenta espetáculos, cria personagens é exímia maquiadora e como atriz foi dirigida por Bibi Ferreira, Jorge Fernando, Fábio Pilar e Marília Pêra. Parece que foi talhada para grandes shows. Como ela mesmo diz, jamais fui “bicha” de inferninhos ou de discos debaixo do braço e batendo de porta em porta. Sempre me convidavam, e isto é outra coisa. O gogó de ouro e o seu sentido de palco, falaram mais alto em seu destino. Nos últimos tempos, vamos encontrar a Marlene Casanova, com muita saúde, bem viva e senhora de si. Diferente do seu passado festivo. Agora se mostra caseira, recatada no aconchego do lar e constrita numa devoção mariana, que a faz ouvinte assídua da Rede Vida e a não faltar as missas das terças-feiras na Igreja de São Pedro dos Clérigos. Matando a saudade, com vocês, Marlene Casanova.

Que recordações você tem da Bahia? Aliás, poucos sabem que você é baiana, não? Que história é essa do “Carneirinho de ouro”?
Não imaginam isso porque passei grande parte da minha vida no Rio de Janeiro. Mas sou de Salvador e da península de Itapagipe. E as minhas recordações mais efusivas são as das docas. Ali na Praça da Inglaterra – no cais do porto – onde nos anos 50 fazíamos para os marinheiros que desembarcavam na cidade, shows de misses nas madrugadas. Eram ingênuos espetáculos cheios de improviso e que culminavam com um convite discreto para subir ao navio com vários deles. Ah! Aí sim é que víamos o “Carneirinho do Ouro” – uma espécie de código da época – que significava “fazer o babado” com aqueles marítimos inesquecíveis. As noites da Bahia de então eram tranqüilas, não havia o pânico generalizado de assaltos e da violência anti gay. Andávamos em grupos e as festinhas das “bichas” aconteciam nas casas de amigos, claro tudo muito escondido e discreto.

E a família? Era complicado ser homossexual naquela época?
Meu Deus, não há comparação com o que vemos hoje! Atualmente todas andam maquiadas, travestidas nas ruas, se prostituem nas calçadas e à luz do dia, freqüentam lugares públicos e ainda se queixam de discriminação? Qual? Havia uma repressão terrível contra homossexuais na minha juventude. Tanto que a minha avó, assim que tomou conhecimento de que eu era “invertido” me despachou para o Rio de Janeiro para que eu fosse viver com o meu pai e o meu tio, ambos machistas e preconceituosos. Foi uma fase difícil para mim. Tive que mudar meus hábitos, esconder as minhas preferências e me sentia hipócrita por ter que mentir todo o tempo sobre a minha condição de gay. Um dia telefonaram pro meu pai me denunciando como “homossexual”. Então, não contei conversa, não esperei que ele me expulsasse de casa, eu mesmo arrumei as minhas coisas e fiz uma carta lhe explicando “sou homossexual sim meu pai, mas jamais serei um marginal ou enveredarei pela senda do crime”. Muitos anos depois tivemos uma reconciliação e eu, já como artista consagrado e posando ao lado de gente famosa lhe mandava fotos que lhe enchiam de orgulho do meu sucesso.


Como surgiu “Marlene Casanova”?
No inicio me auto intitulei “Eliana Macedo”. Nossa, eu tinha uma verdadeira idolatria pela eterna “namoradinha do Brasil” como era conhecida aquela loira das chanchadas da Atlântida. Durante muito tempo em minha vida – Eliana Macedo e Adelaide Chiozzo – foram e ainda são ícones meus de paixão. Algum tempo depois, no Rio de Janeiro, me extasiei diante do glamour do Rádio. Passei a freqüentar os programas de auditório da Rádio Nacional e foi aí que pude comparar Emilinha Borba com Marlene. Então optei por Marlene. Virei “Marlenista” de carteirinha inclusive no nome. Porque ver Emilinha às 10 da manhã no Programa do Manoel Barcelos vestida de strasse não dá. Era muita cafonice. Já a Marlene não, em plena madrugada amarrava uma camisa social na cintura, vestia uma calça jeans e já estava toda posuda e moderna pra época. Marlene era a criatura mais vanguarda que eu conheci. E quando eu já estava fazendo shows em casas de espetáculos – uma delas o Cabaret Casanova – as pessoas se referiam a mim como “ a Marlene do Casanova”, então, atendendo a sugestão da própria Marlene incorporei o Casanova ao nome.

E a carreira artística?
Comecei me vestindo e cantando como Carmem Miranda no Bar Apolo na Rua do Resende. Ganhei quatro vestidos de um velho travesti e com eles vieram o apoio e o incentivo daquela “velha senhora”. Perdi de vez a timidez no palco. No escurinho – voz e violão – encantava a platéia com um repertório à base de Dalva de Oliveira, Dolores Duran, Marlene e Emilinha Borba. Uma noite a fina flor dos travestis “Marquesa” a chefe do clã do teatro Rival me assistiu, gostou e me convidou para integrar o elenco da peça “Vem quente que eu estou fervendo”. A minha carreira engatilhou. Passei a receber convites e fui me esmerando tecnicamente. Em seguida também integrei o elenco de “Liberdade para as Bobonecas” com a direção de Carlos Machado no Cabaret Casanova e no Teatro Rival tive muito sucesso e me tornei bastante popular na peça “O mundo é das bonecas” . Era a época de ouro dos travestis – estávamos em alta e a arte do transformismo super valorizada. Lembro que eu fazia uma imitação tão perfeita da Emilinha Borba que a própria não se reconhecia nas fotos do espetáculo. Fui muito elogiada pela travesti Rogéria que era uma espécie de papiza do meio. De quem viria a ser amiga pessoal e com quem trabalhei em vários shows e turnês pelo Brasil com o show “Folia Tropical”. Uma outra personagem que muito me ajudou neste meu inicio de vida artística foi a talentosa Geórgia Bengston. Foi a minha mestra. Através dela cheguei aos palcos do Brigitte Blair numa acolhida de anos a fio e com muito sucesso.

Foi uma maratona de shows e de espetáculos? Direção competente?
Claro, havia espaços bons e que reclamavam a presença dos travestis. Cantei e fiz shows na Boate Holliday na Prado Jr., na Bolero na Av. Atlântica, na Erótica, sem falar no Teatro Rival, no Brigitte Blair, Cabaret Casanova, Teatro Francisco Nunes, Teatro Carlos Gomes, Serrador e tantos outros até chegar a Galeria Alaska. Um belo dia a Bibi Ferreira me viu no palco e me escolheu para fazer parte de uma grandiosa montagem o “Gay Fantasy” e com destaque. A peça tinha um apelo divertido, uma “nave de travestis que corria o universo à procura de homens”. Ficamos muito tempo em cartaz no Rio e depois no Procópio Ferreira em São Paulo. Sucesso absoluto de bilheteria.

O apogeu na Galeria Alaska, foi a sua fase gloriosa?
“Um lugar diferente onde gente que é gente se entende e se pode amar livremente ” como diz o Agnaldo Timóteo ao se referir ao território dos “entendidos” dos mais badalados da cidade maravilhosa. A Galeria Alaska era a coqueluche dos anos 70 e ainda resistiu gay – aos trancos e barrancos – como pode até o final da década de 80. Deslanchei na Alaska. A convite do João Paulo Pinheiro, o ousado dono do Teatro Alaska, integrei o elenco do Rio Gay com direção do Jorqinho Fernando e ao lado de Rogéria, Shamanta, Eloína, Jane di Castro, Cláudia Celeste e kiriaki. Depois, mais e mais teatro. “Tem folia na família”, uma chanchada em que representei ao lado de Rogério Cardoso, Nádia Maria, Miriam Tereza [filha do Oscarito] com texto do Benvindo Siqueira e de Maria Lucia Dahl. Depois veio “Orquestra de Senhoritas” montagem com travestis sob a direção e concepção da Marilia Pêra. As últimas recordações da Galeria são as do show “A Noite dos Leopardos”. Ousadia sem precedente. Homens lindos, musculosos e com a genitália à mostra todo o tempo. Formavam-se filas no quarteirão em Copacabana. “As bichas surtavam”. Os cambistas faturavam e a Eloína, muito competente, fazia uma seleção rigorosa dos 20 homens do elenco. A cada noite o ritmo frenético das apresentações me punha em polvorosa. Eu tinha que ter um olho na cochia onde os homens se excitavam “ficavam de pau duro” para entrar em cena e outro na platéia enlouquecida e super ávida do sexo exibicionista. Houve várias temporadas daqueles felinos pelados e quando eu saia as ruas as pessoas me apontavam “é a Marlene dos Leopardos”.


E como apresentadora? Dizem que você é uma das melhores do meio, é verdade?
Certa vez a Bibi Ferreira me disse: “O segredo é colocar a platéia no bolso. Ganhar a simpatia do público num primeiro momento e depois, você deita e rola, o sucesso está garantido”. Eu sou uma das que durante anos apresenta o tradicional e grande concurso de Miss Brasil Gay de Juiz de Fora a convite do meu amigo e criador do certame Chiquinho. Também apresentei ao lado de Don Carlos por 14 anos uma página muito rica da história GLS deste país que foi a disputa do luxo e do glamour no “Baile dos Enxutos” no Cine São José na Praça Tiradentes. Um sucesso momesco que fazia celebridades marcarem ponto tipo a Ursula Andrews, Gina Lolobrigida e Liza Minelli.

Elza Soares, Madame Satã, Roberta Close, Lana Bittencourt , Mariel Mariscot, Adelaide Chiozzo e Eliana, o que estas pessoas representam para você?
Fui maquiador da Elza Soares e morei em sua casa durante três anos. A Elza sempre adorou bichas. Seus chás da cinco ficaram famosos, lá estava todos os dias a Rogéria, Valéria, Darla Mendes, Jane di Castro e tantas outras; mas quando o Garrincha chegava, cansado dos treinos e querendo sossego, dava tiros pro alto no portão e daí, “corres viados que o Mane chegou!” era bicha pra tudo quanto é canto… Madame Satã era aquela simpatia total. De chapéu Panamá, simples e educado. O conheci assistindo aos meus espestáculos no Cabaret Casanova e sempre que pude, de maneira respeitosa, registrei a sua presença na casa. Fiz muitos shows em presídios e em especial na Ilha Grande – animávamos aos presos, e lembro do gentleman, da beleza e da finess do “bandido mais famoso do Rio” Mariel Mariscot. Sem julgamento moral – aquele sim sabia tratar com respeito um travesti. Já a Lana Bittencourt me é muito cara. O Brasil sem memória e ingrato não reconhece o grande valor desta mulher que canta em vários idiomas, que fala do amor como ninguém e com quem também residi parte da minha vida. A Lana é uma expressão genuína do bom gosto musical e da elegância do canto nacional. Uma pena que vivamos numa terra que sepulta em vida o talento e a competência das pessoas. Já Eliana – a rainha das chanchadas e a minha fonte de inspiração no comecinho da minha trajetória artística – é uma eterna Diva assim como a Adelaide Chiozzo uma excelente amiga. Já a Roberta Close – que eu lancei – pois quando a Revista Close me procurou e me pediu que indicasse um travesti para figurar nos encartes, foi o Roberto Gambine, como era a bonita La Close na época que eu indiquei. E não foi só isto, também ensinei a Roberta a posar para fotos, a ter uma postura e desenvoltura diante dos flash. A edição foi um sucesso e daí nasceu “ Roberta Close”. Pois bem, apesar de amável e de ser gentil comigo, nunca se lembrou deste detalhe ou mencionou tal fato.


Como foi a sua fase de líder sindical?
Uma grande experiência de vida. Ao lado da presidente a atriz Rosa Maria Murtinho no Sindicato dos Artistas do Rio de Janeiro e fiquei à frente da diretoria de artes e espetáculos que envolviam travestis e transformistas que trabalhavam na noite carioca. Incentivei muita gente a fazer os seus curriuculuns de trabalho e a terem o registro e a carteira de contribuição e filiação sindical que eram os mecanismos mínimos de defesa da categoria. Lembro que se filiaram à minha época a Lola Batalhão, Mayme dos Brilhos e o Ruddy.

E este “fuzuê” com a Laura de Vison? Você queria arrastar o tapete da mona?
Jamais, tenho o maior carinho e respeito pela Laura.. Inventaram esta história de que eu teria escondido o vestido da bicha num engradado de cerveja. Não sou de dar rasteira em ninguém, tenho méritos próprios, não temo talento alheio porque tenhos os que Deus me deu e toda competição é saudável porque faz você crescer. Fui eu, que no auge da fama noTeatro Rival, me lembrei da Laura que andava em casa e meio esquecida. Dai falei pra bicha mais próxima – “minha nossa Senhora, por onde anda a Laura? anda bicha, diz pra Laura me procurar que tenho um trabalho pra ela” . Somos muito amigas e a Laura é uma batalhadora, embora a inteligênica Gay desta terrinha a tenha rotulado como “unicamente trash”. Uma pecha incompatível com a Vison.


Como está o coração e o espírito da Marlene Casanova?
Seguindo o curso natural da vida. Não penduro as chuteiras e não entrego os pontos. Posso não estar no circuito das novas expressões GLS. Mas tenho um passado glorioso e uma carreira que muita gente jamais terá porque não tiveram as oportunidades artísticas que eu tive. Findaram-se os grandes espetáculos com travestis. Acompanhei a melhor fase do travestismo arte neste país. Com relação ao espírito. Continuo apostando no bem e descobri nas orações e nas preces o sinal da calma espiritual. Não guardo mágoas de nada e não abrigo rancores dentro de mim. Ainda tenho o coração aberto ao amor – namoro sim – tem sempre alguém que gosta da Marlene Casanova. Me tornei mais seletiva em tudo. Nas amizades, nos convites para Shows e apresentação de espetáculos e na escolha de badalações e festas do meio. A qualidade é o alvo que persigo na minha existência de agora. Mas viver é uma grande “Revista” o show deve continuar – sorrir ou chorar – faz parte. Deus quer assim e está bom pra todos nós! Beijos da Marlene Casanova em todos que não a esquece.


Rapidinhas com a Marlene:
Drags Queens
Isabelita dos Patins, Nany Peaple e Kaká di Polly
A melhor Carmen Miranda
A melhor performance desta Diva foi a do Erik Barreto [já falecido] que eu lancei como Diana Finsk
Barbies
No meu tempo os homens tinham músculos naturais sem bombas e anabolizantes.
As melhores de agora
Kamille, Rogéria , Fugyka de Holliday, Bárbara Hudson, Suzy Parker, Paula Braga , Leon Schenneider, Cláudia Celeste, Ludmila Bravo e Jane Leclary
As melhores do Céu
Geórgia Bengston
Maria Leopoldina
Kiriaki
Veruska

IMPORTANTE:
Para shows e consultoria na área de espetáculos fale com Marlene Casanova o Tel.. é : 71 329 2134
Confira mais fotos






